Humano vil


Anabela Kohlmann Ferrarini

Meu olho entristecido espreita o céu e chora
minha boca sente o gosto acre da fumaça
o medo me engana, a dor não vai embora.
meus punhos se cerram, a fúria não passa.

Meu rosto se torna cinzento – lágrimas e fuligem –
minhas mãos trêmulas pelejam contra as chamas
os pulmões ardem, a cabeça roda em vertigem
caio de joelhos ao solo ferido da terra Pindorama.

Faz-se escuro, não sei se sonho, esmoreço ou morro
sei que a face do horror me dilacera o peito:
- Culpado, peço perdão! Aflito, imploro socorro!
Esterilizei a mata, matei sem nenhum respeito.

Humano vil, eis o que sou, sobre a terra marchei, ávido
palmo a palmo consumindo, sem pesar, sem compaixão.
Vi tombarem as árvores, no sobe e desce do machado
morrerem os bichos, no crepitar do fogo, no ranger do correntão.

Sob lavoura e pasto fiz minguar o insondável mar dos Xaraiés
transformei em monótona terra plana o horizonte do Cerrado
depositei no sem fim das plantações o futuro e toda a fé
da onça-pintada e do lobo-guará roubei a terra, e dei ao gado.

Da portentosa anta e da miúda formiga carpinteira
tomei o mundo, o alimento farto, o céu azul, a água fresca e pura.
Acuei a vida, deixei-a sem amparo; do aguaceiro, fez-se poeira.
Miserável, condenei a fauna e a flora à escassez e à secura.

De sangue e morte será minha colheita, por muito tempo ainda
e a herança que deixo a ti, criança, me envergonha agora.
Fogo e sede serão a minha triste paga, castigo que não finda
enquanto meu olho, arrependido, espreita o céu e chora.

- Fauna e flora do Pantanal queimam sem cessar.

(In: FERRARINI, Anabela R. Kohlmann. Palavras de papel. Novo Hamburgo, RS: Toca, 2023, p. 116-117.

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Anabela Kohlmann Ferrarini

E-mail: anabelaferrarini@hotmail.com

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