Na minha rua tem um cachorro rouco*


Anabela Kohlmann Ferrarini

Na minha rua tem um cachorro rouco.
Acontece que, dias atrás, a lua surgiu enorme e branca por detrás do muro do quintal. O quintal é o mundo do cachorro, de onde ele espia o céu, dia e noite, noite e dia. Tem também um portão vermelho, carcomido de ferrugem, mas está sempre fechado, só de vez em quando, pela fresta aberta por quem entra ou sai, o pobre cão consegue vislumbrar a roda de um carro, um guarda-chuva preto, uma bola de futebol rolando e um menino a correr atrás dela.
É uma vida solitária, a do cachorro. O humano com quem ele mora não lhe dá afago ou passeio, somente água e ração – a medida mínima da sobrevivência.
E é por isso que o cachorro irrompe facilmente em paixões desmedidas pelas coisas e criaturas que fazem parte de seu quintal-mundo: borboletas fagueiras, mimosas joaninhas, até uma margarida que cresceu branca e amarela junto ao muro, tão só quanto ele.
Mas desta vez o desafortunado cão tomou-se de amores pela lua, quando a viu brilhante a flutuar no imenso céu salpicado de estrelas. Quando ela se equilibrou sobre o muro de tijolos alaranjados, pensou alcançá-la, mas logo a malvada se foi, subindo, subindo, cada vez mais distante e altiva. E ele latiu a noite inteira, chamando por ela, cada latido uma declaração de amor atravessando o ar.
Até cantou, coitado. Mas já estava tão cansado que o uivo saiu um ronco feio, um lamento medonho, que fez a lua se esconder atrás das negras nuvens que pelo céu pairavam. Por sete noites o desvairado cachorro, transpassado de amor, repetiu a cantoria, mas a cada noite a lua mais se encolhia. Minguava a lua, traçando sua rota no céu. E o cão mais se desesperançava. Onde estava sua amada, redonda e bela?
Ficou rouco para sempre, desconfio, pois, quando late, parece um velho motor cansado, resfolegando com esforço. Quando uiva, então, me faz lembrar um vapor tocando tristemente no cais, em um longo adeus.
Pela janela do meu apartamento, vejo seu longo rabo cinzento e peludo a balançar, enquanto late olhando um fiapo de lua no céu. Descanso a testa na vidraça gelada e observo o cão e seu quintal. Um pesar imenso me consome. Já não sei se é a solidão do cão ou a minha própria que me devasta.
As paredes que me confinam se tornaram o meu mundo, e a janela, meu portal, por onde vejo a vida mascarada passar. Suspeito que as máscaras que agora colocamos desnudaram as máscaras que vaidosamente ostentamos dia após dia, como se o amanhã fosse uma promessa infindável. E não somos graciosos, somos grotescos. Humanamente grotescos em nossas paixões tão equivocadas.
Basta! Mais me vale o incessante sonho do cão, remota chama de esperança e beleza num mundo-homem.
Está uma noite fria e meu nariz está gelado, talvez uma xícara de chá preencha o ermo em que me encontro. O telefone toca, estridente, e, ao atender, espanto-me com minha própria voz, que sai rouca, riscando a garganta que tem andado tão silenciosa. Tão rouca quanto a do cachorro que chora no quintal ao lado.
É. Na minha rua tem um cachorro rouco e triste. Tão triste quanto eu.
O que me faz lembrar que preciso comprar pastilhas para tosse, se eu quiser cantar na varanda amanhã, ao pôr do sol, e mandar embora a tristeza.
Amanhã vai ser outro dia. Apesar de tudo, vai ser outro dia.
Para mim e para o cachorro rouco.

* Este conto ficou em segundo lugar no Concurso Contos da Quarentena, promovido pela TV 247 e Editora Kotter. Faz parte do Volume 1 da Coletânea de mesmo nome publicada pela Editora, em 2020.

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Anabela Kohlmann Ferrarini

E-mail: anabelaferrarini@hotmail.com

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